quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Uma Ideia da Índia

Excertos do livro "Uma Ideia da Índia", um livro que acabamos de ler.


“Uma Ideia da Índia” Alberto Moravia – Tinta da China Edições

 Alberto Moravia percorre a Índia em 1961, um percurso que teve a duração de mês e meio. A ideia da Índia de Alberto Moravia é a de uma espécie de reverso da Europa. Antes de mais pela relação com a morte, tão distinta, mesmo antagónica: «na Europa o terror da morte sempre suscitou a mais viva aspiração à imortalidade pessoal e espiritual; ao passo que na Índia o terror da vida […] suscitou a aspiração oposta: o aniquilamento definitivo através da ascese, ou seja o nirvana».

Com que então, estiveste na Índia. Divertiste-te?

Não.

Aborreceste-te?

Também não.

O que te aconteceu na Índia?

Fiz uma experiência.

Que experiência?

A experiência da Índia.

E em que consiste a experiência da Índia?

Consiste em fazer a experiência daquilo que é a Índia.

E o que é a Índia?

Como hei-de dizer-te? A Índia é a Índia.

Mas suponhamos que eu não sei de todo o que é a Índia- Diz-me tu o que é.

Eu também não sei verdadeiramente o que é a Índia. Sinto-a, é tudo. Também tu deverias senti-la.

O que queres dizer?

Quero dizer que deverias sentir a Índia do mesmo modo que se sente, no escuro, a presença de alguém que não se vê, que guarda silêncio, no entanto está lá.

Não te compreendo.

Deverias senti-la, lá longe, a oriente, para lá do Mediterrâneo, da Ásia Menor, da Arábia, da Pérsia, do Afeganistão, lá longe, entre o Mar da Arábia e o Oceano Índico, onde está e te aguarda.

Aguarda-me para fazer o quê?

Para não fazer nada.

Mais uma vez não te compreendo.

Ou melhor, para não fazer, em absoluto.

Está bem. Mas ainda não me disseste o que é a Índia.

A Índia é a Índia.

Diz-mo numa fórmula, numa frase, num slogan.

Pois bem, a Índia é o contrário da Europa.

Fico a saber o mesmo. Em primeiro lugar, seria preciso que me dissesses o que é a Europa.

Prefiro encontrar um slogan para a Índia. Ora bem, digamos que a Índia é o país da religião. 

E isso seria o contrário da Europa. Mas a Europa também é religiosa.

Não, a Europa não é religiosa.

No entanto, as religiões pagãs do Mediterrâneo e dos países nórdicos, o catolicismo, a reforma…

Não importa. A Europa não é religiosa.

É o quê, a Europa?

Se eu fosse indiano, talvez to soubesse dizer. Como europeu, torna-se-me difícil.

Então, imagina que és um indiano.

Como indiano, dir-te-ia: a Europa, aquele continente onde o Homem está convencido de que existe e de que se encontra no centro do mundo, e onde o passado se chama história, e a acção é preferida à contemplação; a Europa onde comummente se crê que a vida vale a pena ser vivida, e onde o sujeito e o objecto convivem em boa harmonia, e duas ilusões como a ciência e a política são levadas a sério e a realidade nada esconde, e no entanto, apesar disso, é nada;

 

 

Então, diz-me o que é a religião.

Já te disse: a religião é a Índia e a Índia é a religião.

Assim não saímos disto. Tens de me dizer o que é essa religião, da qual as religiões não são mais do que resultados de segundo grau; e, uma vez que a religião é a Índia, tens de me dizer o que é a Índia.

É difícil dizer-to. Enquanto estive na Índia senti a presença da religião em muitas coisas, em muitos aspectos. Teria de te descrever a Índia inteira, pensa só, um continente que é pouco menor do que a Europa, quatrocentos milhões de pessoas, quinhetas mil aldeias, milhares de divindades…

Começa ao acaso. Diz só as coisas que mais te impressionaram. Ou as que primeiro te vierem à ideia.

Pois bem, ao acaso. O cheiro adocidado, penetrante, fétido e nauseabundo, como o da sânie, de flores putrefactas ou de fruta podre, que se sente nas vielas de Benares, enquanto se abre o caminho por entre a multidão de peregrinos.

A religião, um cheiro?

Quiseste que começasse ao acaso. Vou dizendo de seguida as mais diversas coisas. Cabe-te a ti pô-las por ordem, dar-lhes um sentido. Portanto, o cheiro. E também a sensação; enquanto aquele cheiro me dá volta ao estômago e me faz vir à boca um sabor a vómito, a sensação, nas costas, do focinho macio e húmido de uma vaca sagrada que, não tendo espaço para avançar pela ruela, me empurra, e com esse gesto me faz ir contra seis ou sete leprososs que caminham em fila, com os cotos envoltos em ligaduras e as faces lustrosas de muco e pus.

Isso é a religião?

Sim, e também as torres sublimes dos templos do Sul, em Thanjavar, em Maduré, em Kumbakonam, as torres a que chamam gopuram, que sobem e sobem como escadas angelicais em direcção ao céu azul e luminoso, levando para o alto, por entre os voos negros dos corvos, inteiras populações de esculturas gesticulantes, enquanto em baixo, nos pátios imundos e nas piscinas impuras, os peregrinos pululam como insectos.

Até que enfim, afinal sempre há algo de sublime na religião?

A religião é o símbolo fálico guardado nas celas dos templos, estilizado na forma de um enorme fradépio de pedra negra, untado e reluzente de óleo sagrado, espargido de corola de flores vermelhas na ponta, mergulhado numa obscuridade sinistra, promíscua, fétida, sórdida e gélida. Ao mesmo tempo, a religião é o Buda gigantesco esculpido na rocha da última gruta de Ajanta, estendido e em estado de nirvana numa penumbra limpa e monástica, a cabeça apoiada na mão, o braço estendido ao longo do corpo, as pálpebras cerradas, dir-se-ia que não tanto sobre os olhos quanto sobre o mundo inteiro que está dento dele. Religião são também as rodas de coitos a toda a volta dos templos de Khajurah; e o Nandi, o touro sagrado, monolítico, de mármore negro, do templo de Thanjavar.

E que mais?

A religião é a multidão de Calcutá, onde o bazar tem as ruelas mais estreitas e mais lamacentas, os armazéns mais compactos e a abarrotar de mercadorias, os casebres mais periclitantes e mais sórdidos. Aquela multidão que pulula dolorosa e febrilmente no bazar como um emaranhado de vermes numa chaga, e que não sossega nem mesmo à noite, quando os passeios das ruas se apresentam, a perder de vista, cobertos de corpos adormecidos, prostrados nas lajes como mortos num campo de batalha; se, com o toque de varinha mágica da tua imaginação, substituíres essa multidão pela necrópole de Golconda, abandonada ao sol e ao vento com os seus túmulos monumentais, limpos e áridos como cascas de moluscos fossilizadas, terás uma vez mais a religião.

Quantas coisas é a religião?

Muitas. Por exemplo a planície indiana, de um verde pálido, demasiado claro, melancólico, fúnebre, coberta de neblinas de calor, imersa num sol emfermo, silenciosa, informe, irreal. E os castelos construídos sobre as ruínas rupestres, que surgem de improviso nessa planície, fortes e intactos de longe, ruínas esboroadas de perto. E os leitos secos das torrentes, em que os rebanhos se embebem de pó.

E que mais?

A floresta de palmeiras no Sul, alta, vazia e sombria como uma única e imensa catedral, com as aldeias feitas de palmeiras, acaçapadas à beira dos profundos canais ou nas margens dos charos cheios de nenúfares; e a mata do Norte, amarela e poeirenta, com as aldeias, feitas de lama seca ao fundo das veredas, e as vacas ossudas deitadas na poeira das clareiras, e o cheiro a esterco seco e a caril pobre no ar.

Então tudo é religião, na Índia?

Pois não foi o que te disse? Tudo. Até o modo como se vestem. Vê a vestimenta dos homens, aquele lençol que enrolam em torno dos ombros e das costas e que depois passam por entre as coxas e por fim em volta das pernas, deixando-o em pender das virilhas sobre a barriga das pernas; vê o vestuário das mulheres, aquele véu justo que as enfaixa desde o peito até aos artelhos, transformando-as em inúmeras lagartas de cores vivas e cabeças olhudas; e diz-me lá se por trás daquela maneira de se cobrirem e de se envolverem não está a religião. E que outra coisa é, senão religião, o turbante dos homens, ou seja, aquela ideia de enfaixarem a cabeça como se estivesse ferida; ou a pérola de ouro que as mulheres colocam na narina, ou seja, a ideia de fazer que o ornamento se torne uma excrescência do corpo?

Diz-me outra coisa qualquer, assim, sem pensar.

A religião é o monstro pequeníssimo, com não mais de cinquenta centímetros de altura, uma grande barba negra e as pernas arqueadas, nu, que me olhava da entrada de uma loja de Calcutá, em que eu tinha entrado para comprar um sari.

Um monstro?

Sim, um monstro. E também o Taj Mahal como o vi de Agra, ao longe, ao crepúsculo de uma dia abafado, em tudo semelhante a um grande polvo branco, com a cúpula branca semelhante à cabeça branca do polvo e os quatro minaretes brancos semelhantes a quatro tentáculos brancos, flutuando por entre as neblinas vermelhas e violáceas, enquanto a noite descia e a pouco e pouco o engolfava na obscuridade.

Também isso é a religião?

Sim, também isso. Mas não queria por nada esquecer os chacais que ladravam em Chattarpur, de noite, junto à rest house, e o abandono da rest house, com os seus móveis, as suas gravuras, os seus cortinados ingleses malcheirosos, bolorentos, amarelecidos e empoeirados, como de resto por toda a Índia estão bolorentos, malcheirosos, amarelecidos e empoeirados os objectos criados pelos ingleses para os ingleses.

Também a Inglaterra é religião?

Na Europa, não. Mas na Índia, sim. Tal como a França, Holanda, Portugal e todos os países europeus que procuraram, ao longo dos séculso, dominar a Índia, colonizá-la, conquistá-la.

Então, a religião será a impossibilidade de lançar os alicerces do que quer que seja na Índia. Ou estou enganado?

Estãs enganado, naturalmente, porque tentas restringir a Índia a um dos seus muitos aspectos.

Terminaste?

Não terminei, no entanto procurarei terminar. Digamos então, para concluir, que a religião é a gruta de Elephanta, próximo de Bombaim, ao fundo da qual está esculpida em alto-relevo a efígie de Xiva. Esta escultura tem algumas características particulares, graças as quais se pode, com razão, apontá-la como a melhor descrição daquilo a que chamo a Índia, ou seja, a religião.

E quais são essas características?

É gigantesca, ou seja, ultrapassa a estatura humana, reduz-se apenas à cabeça, ou seja, é obcecante; é multíplice, ou seja, omnipresente. Mas, sobretudo, representa Deus, não como homem, que é o modo europeu de o representar, mas como Deus. Em suma, uma tautologia, e por isso ainda mais difícil, já para não dizer impossível, de ser representada por uma escultura.

Uma tautologia?

Sim. Para elucidar, vejam-se estes versos dos Upanixadas: «No princípio existia apenas o Ser sob a forma de pessoa. Olhando à sua volta, não viu mais ninguém além de si próprio. Então disse: “Este sou eu”. Por conseguinte, Eu passou a ser o seu nome. Por isso ainda hoje, quando se chama uma pessoa, ela responde em primeiro lugar: “sou eu…”. A seguir declara outro nome, que é o seu.»

E que mais?

«Ele teve medo, porque aquele que está só tem medo. Depois ponderou: “De que hei-de ter medo, se nada existe além de mim?” Então, o medo desvaneceu-se. De facto, do que havia de ter medo? Tem-se medo de outro.»

Isso é a religião?

Sim, isto é a religião, para quem se quiser dar ao trabalho de pensar nisso. A cabeçá de Xiva é tríplice, como eu já disse. O rosto de frente, ao centro, é o de Xiva criador; o rosto de perfil, à esquerda, é o de Xiva destruidor; o rosto de perfil, à direita, é o de Xiva conservador. O primeiro rosto tem uma expressão contemplativa, o segundo, ameaçadora, e o terceiro, afectuosa. Estes três rostos nada têm de humano, nem mesmo de forma indirecta, alusiva, simbólica. Mas, por estranho que pareça, a sua espiritualidade faz-se acompanhar de uma notável fisicidade dos traços. Deus é pingue, de meia-idade, tem o lábio inferior cheio e pesado, a fronte alta, o queixo gordo, as orelhas grandes. Por outras palavras, a representação de Deus não é idealizada, como na Europa, mas realista. Assim sendo, deus é mesmo Deus, nem mais, dir-se-ia, nem menos.

Terminaste?

Sim, desta vez terminei mesmo.

Mas eu ainda não compreendi por que razão a Índia é a religião.

O que querias mais?

Uma definição.

Então dir-te-ei aquilo que te podia ter dito desde o início: a Índia é um conceito de vida.

Que conceito?

O bem conhecido conceito, segundo o qual tudo aquilo que parece real não é real, e tudo aquilo que não parece real é real. Deste conceito deriva a desvalorização completa da vida como coisa absurda e dolorosa, e a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo, mas sim pra dele sair e juntar-se à realidade supra-sensível, ou seja, espiritual. A religião é, pois, um conceito completamente negativo no que respeita à realidade dos sentidos, por ser completamente positivo quanto à realidade espiritual. Disse que a Índia é a religião, porque todo o mal e todo bem da Índia parecem confirmar e justificar esse conceito.

É um conceito pessimista.

Não, não é um conceito pessimista, é um conceito que nega certas coisas e afirma algumas outras. É pessimista se o considerarmos do ponto de vista das coisas que nega, é optmista se o considerarmos do ponto de vista das coisas que afirma. É pessimista do ponto de vista europeu ou, pelo menos, daquele que em tempos era o ponto de vista europeu; é optimista do ponto de vista indiano ou, pelo menos, daquele que em tempos o ponto de vista indiano.

Porquê? Ambos os pontos de vista mudaram?

Sim, mudaram.

E de que modo?

Os indianos imitam os europeus e os europeus os indianos.

Ou seja?

Os indianos gostariam de acreditar nada realidade dos sentidos, os europeus acreditam cada vez menos.

Então, uma vez que os pápeis se inverteram, para que te serviu a Índia?

Já te disse, para fazer a experiência da Índia.

Ou seja?

Ou seja, ver por que razão os europeus são europeus e os indianos indianos.

Sem comentários: