quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Viajar na Índia

Não resistimos... mais excertos do livro! 

No próximo post já relatamos as nossas aventuras... 


A Índia é o país das coisas incríveis, para as quais olhamos três vezes e esfregamos os olhos, julgando ter tido ilusões ópticas.

Uma viagem pela Índia significa um passeio através da uniformidade de uma país imenso e, ao mesmo tempo, extraordinariamente unitário. À medida que os quilómetros vão passando nos marcos à beira da estrada e os lugares tão sonhados vão desfilando, um sentimento de desilusão, a princípio incerto e depois cada vez mais convicto, insinua-se no espírito do viajante que vai em busca do pitoresco. Nomes orientais que, lidos no mapa, o tinham levado a esperar inimagináveis magias exóticas, servem ao invés para indicar cidades em que, à excepção de alguns monumentos muito notórios, mas não excepcionais, tudo é mutio semelhante, de tal modo que ter visto uma é o mesmo que tê-las visto todas. Com efeito, a cidade indiana não é mais do que um enorme bazar ou um aglomerado de lojas de tipo medieval, pitoresca à primeira vista e, depois de um olhar mais atento, assaz monótona, com aquela monotonia confusa e um pouco irritante que é própria da pobreza e da ausência de qualquer plano urbanístico. E o campo não é mais variado: grandes planícies de uma serenidade melancólica, imersas numa luz resplendente e fúnebre, descoradas, arenosas, intermináveis.

E por fim a verdade desponta: a Índia não é um país bonito como, por exemplo, a Itália, nem pitoresco como, por exemplo, o Japão. A Índia é um continente em que são dignos de interesse, sobretudo, os aspectos humanos. Desse ponto de vista, a Índia é com certeza a nação mais original de toda a Ásia, pelo menos para nós, europeus, que logo tentamso descobrir semelhanças e afinidades que procuraremos em vão na China ou no Japão. A aventura política, socil, religiosa e artística daquele ramo de estirpe nórdica que, em vez de se dirigir para a Europa, desceu ao subcontinente, é plena de fascínio e de ensisamentos para os europeus. Diríamos mesmo que não se pode compreender por completo a civilização europeia se não se conhecer a Índia. Mas a Índia vista com os olhos do turista ignorante até pode ser uma desilusão.

O que fica, então, na memória, de uma viagem de automóvel, suponhamos, ao longo dos mil e poucos quilómetros do vale do Ganges, de Nova Déliaté Calcutá? Primeiro que tudo as árvores, ao longo das estradas. São árvores magníficas, as mais belas do mundo, enormes, membrudas, carregadas com uma folhagem densa e pesada. Debaixo dessas árvores, à beira da estradas, vêem-se grupos de homens e de mulheres sentados, em poses imóveis e contemplativas, que parecem descansar das fadigas dos campos; ou então um asceta ajoelhado e extático, observado com curiosidade por família de macacos. A mais impressionate dessas árvores é a figueira-de-bengala, que podia ser o símbolo vegetal da Índia, como o cedro o é do Líbano, uma espécie de tribo de árvores fundidas num tronco múltiplo, com os grandes ramos carregados de raízes aéreas, pendentes e cinzentas, semelhantes e barbas. Outras árvores há que têm no cimo de cada ramo uma única flor vermelha, como uma chama. Estranhos esquilos estriados, que fazem lembrar lagartos, vivem nesta árvores em grande quantidade; e à passagem do carro levantam delas bandos de pequenos papagaios verdes.

Outra recordação: a mata. Esta palavra famosa designa, na realidade, a variedade indiana da nossa mancha mediterrânea. São vastas extensões de terreno árido, espaçadamente coberto de arbustos e moitas, por entre os quais de destacam, aqui e além, grande árvores de copas redondas. A mata é geralmente seca e poeirenta, toda percorrida por clareiras serpejantes que parecem carreiros. Tem um aspecto decrépito, maligno, selvagem, mas selvagem de um modo particular, dissimulado sob uma aparência de pacatez. Nos sítios em que se afunda em alguma ravina rochosa ou reveste uma colina rupestre, a mata sugere irresistivelmente a presença dos grandes felinos – leopardos, panteras, tigres – que têm fama de ali habitar.

 

 

As aldeias indianas ficam, sem dúvida, na memória, quanto mais não seja por serem tão numerosas, cerca de meio milhão em toda a Índia. Há-as de duas espécies: a aldeia que é apenas de habitação e a aldeia que é também bazar. As aldeias que são só de habitação situam-se, na maioria, a uma certa distância da estrada. Entrevêmo-las, quando em viagem, ao fundo de caminhos que serpenteiam por entre as culturas, com os telhados de palha e um bocado das paredes de lama seca e despontarem acima dos campos. Um charco de água estagnada, verde e tépida, salpicada das largas folhas e das flores brancas do lótus, encontra-se habitualmente à beira da aldeia, reflectindo melancolicamente as margens terrosas e as vacas que ali estão acaçapadas. As aldeias são asseadas, embora o chão entre as casas seja de terra batida. Os habitantes das aldeias têm, na sua maioria, um aspecto atraente; os homens são secos, bem feitos, nobres, as mulheres muitas vezes belas, com um porte cheio de dignidade quando vão buscar água ao poço, levando uma ânfora à cabeça, ou se dirigem para os pastos com as crianças e as cabras. A curta distância da aldeia, numa clareira herbosa, encontra-se o lugar sagrado, com um pequeno altar ungido de óleo e salpicado de flores, e a toda a volta, com frequência, estátuas enormes e grotescas feitas de pasta de papel colorida: guerreiros de bigodes, cavalos arreados, elefantes e vacas.

 

 

A aldeia bazar, chamemos-lhe assim, encontra-se por sua vez em plena estrada, dos dois lados do asfalto, sobre o qual derramou, como se por efeito de um terramoto, todas as suas variadas e miseráveis mercadorias. Estas lojas contêm um pouco de tudo; mas tudo parece ser velho e em segunda mão, com excepção da fruta: pneus para bicicleta, garradas de bebidas, tecidos baratos para saris, medicamentos americanos, latas de conversa inglesas, utensílios, chapéus, sandálias. Por vezes estes humildes emórios encontram-se na confluência de duas ou mesmo quatro grandes estradas provinciais, e então, na ampla encruzilhada à sombra das grandes árvores frondosas, é interessante observar a vida da estrada, que na Índia tem aspectos íntimos e familiares que, não sendo ali, só se podem encontrar dentro das quatro paredes das casas: homens e mulheres a conversar acoçorados no chão, peregrinos e ascetas que se despem ou se vestem e fazem as suas abluções purificadores junto à fonte, famílias que comem com compunção a comida comprada nas lojas dos fritos, e talvez até um «cirurgião» ambulante a cortar as unhas dos pés ou a limpar as orelhas a um cliente. Entretanto, manadas de búfalos andam à volta das bombas de gasolina, carreiras, cheias, a rebentar pelas costuras, param e voltam a partir, e um elefante altíssimo, dir-se-ia que sobrecarregado com o peso da sua antiga pele, toda ela bolsas e pregas, vai para o trabalho lado a lado com um moderno tractor de lagartas de fabrino indiano.

 

 

Recordaremos, finalmente, as chegadas às cidades indianas, quase sempre repentinas. Um minuto antes estávamos em pleno campo, atravessando sítios desertos, e um minuto depois estamos cercados pela fervilhante e febril multidão urbana…

 

 

É frequente os indianos perguntarem-nos qual o aspecto do seu país que mais nos impressionou. Devemos notar que eles fazem esta pergunta de uma maneira quase triste, como se previssem antecipadamente a resposta. A qual, de facto, não pode ser senão uma: «A pobreza.» Perante esta resposta, os indianos abanam a cabeça, como que a dizer: «Já sabíamos.» Nenhum deles protesta ou tenta sugerir outros aspectos mais dignos de nota. E é verdade que a Índia muitas são as coisas, algumas muito belas, que podem captar a atenção do viajante. Mas a pobreza, pelo menos hoje, é realmente o aspecto dominante.

 

 

Mas por fim, a ideia que os templos despertam é zoológica, naturalista; os templos são polvos fossilizadosm, postos a descoberto canvando a terra que os ocultava há milhares de anos. Antes de mais, têm uma forma de polvo: a cúpula do feitio de um pão de açúcar evova o corpo em forma de capuz, e as câmaras por baixo da cúpula são os tentáculso amontoados. A cor de pedra é rosa-velho, com listas negras de sujidade que por ela escorreu, precisamente a cor do polvo depois de cozido. E os ornamentos dispostos em riscas verticais na cúpula, que vão do ápice à base, fazem lembrar as fileiras de ventosas que se alinham nos tentáculos dos cefalópodes.

Olhemos um destes templos mais de perto. Ergue-se sobre uma base ou tribuna não muita alta e as paredes maciças fervilham de esculturas ordenadas em procissões sobrepostas. Mais em cima eleva-se a cúpula cónica, cuja forma recorda um pouco um mitra episcopal, escapando ao olhar na profundidade do céu azul. As figuras, de dimensões que são metade das reais, esculpidas em alto-relevo, são de dois géneros: figuras individuais, que na maioria são de divindades femininas, e composições com divindades de ambos os sexos. As figuras individuais representam raparigas em atitudes familiares, íntimas, como olhar-se no espelho, tirar um espinho do pé, pentear-se, colher um fruto e outras semelhantes. Todas elas são esculturas de uma beleza sensual e graciosa, que evidenciam a busca constante e quase obsessiva da linha curva, ondeante, da superfície suava, flexível, do volume cheio, redondo. Dizer que o escultor ama estas figuras é pouco; parece acariciá-las e desejá-las no momento em que as esculpe. Basta, aliás, ver o modo como estão esculpidos o seio e os quadris destas raparigas de pedra, para perceber o sentimento de volúpia que se esconde por trás de semelhantes representações de beleza feminil. O seio da mulher, em Khajurah, como de resto por toda a parte nos monumentos indianos, não tem nada de estatuário, se com esta palavra pretendermos indicar qualquer coisa de frio, de estilizado, de casto; os dois globos perfeitamente redondos e muito grandes, que os escultores indianos colocam à altura das axilas das figuras feminias, têm toda a ternura, o peso e, dir-se-ia, o calor da carne. Deslocados para cima ou voltados para baixo, conforme as posições, têm a mesma função dos quadris, também eles esculpidos com abudância de curvas e tornados exageradamente salientes por meio de engehosas e acrobáticas distorções e flexões, ou sejam sugerir uma ideia do corpo feminino como sendo qualquer coisa de unicamente sensual e provocante, tão sensual e provocante que traia a sua própria natureza até nas mais inocentes ocupações.

Inocentes não são porém, as ocupações a que se dedica as figuras das composições, pelo menos com a moral do Ocidente. Trata-se quase sempre do acto sexual, executado ora por um homem e uma mulher, ora por vários homens e várias mulheres. Aqui a sensualidade, que nas figuras individuais é alusão, transforma-se em acção, e as raparigas que já vimos representadas sozinhas, em atitudes castas e domésticas, mostram do que são capazes quando têm companhia: abraços apaixonados, amplexos e furiosos, impulsos animalescos, enroscamentos frenéticos, submissões extáticas, emaranhados acrobáticos. Mas mesmo nestas figuras tão movimentas e explícitas o escultor manteve um ritmo, uma ordem, uma cadência ritual e celebrativa que lembra muito alguns monumentos europeus antigos. Substituam as representações heróicas e militares dos templos gregos e das colunas triunfais romanas por variações do acto sexual e terão as esculturas de Khajurah.

É este, pois, o escândalo de Khajurah, esta novidade tão velha como o mundo, a representação do momento mais íntimo, mais secreto e mais misterioso da relação amorosa. A esse mesmo momento s referem também, é certo, muitas obras de arte na Europa, mas trata-se quase sempre de alusões, de metáforas, porque no Ocidente a representação realista do acto sexual quase nunca parece necessária;  e é justamente essa falta de necessidade que faz dela quae sempre, quando existe, algo de pornográfico. Como é que os indianos, e só eles no mundo, acharam necessário representar o acto sexual e, precisamente por o terem achado necessário, conseguiram fazer dele tema de beleza?

A resposta a esta pergunta é dada pelas próprias esculturas, ou melhor, pelo seu significado, a sua justificação ideológica. O que as esculturas de Khajurah representam são divindades de ambos os sexos, as quais unindo-as das maneiras que dissemos, além de nos proporcionarem uma descrição naturalista do acto sexual, querem encobrir o divino, cósmico e inefável desejo que, segundo a religião indiana, está na origem de todas as coisas. Por outras palavras, em Khajurah encontramo-nos perante uma representação análoga à do Génesis. E aquelas mulheres e aqueles homens, entreleçados em posições eróticas, não são muito diferentes dos adões e das evas que no Ocidente se vêem por toda a parte esculpidos debaixo da árvore do éden, em volta da qual se enrosca a serpente tentadora.

Nada pode dar melhor ideia da diferença entre o conceito dos indianos, místico, naturalista, realista, e o dos europeus, ético, simbólico e humano, do que a comparação entre os amplexos acrobáticos dos templos de Khajurah e a fábula bíblica das igrejas europeias. Na Europa, Adão e Eva não no são mostrados no acto de união carnal, e o pecado é escondido pelo símbolo do fruto proibido, porque o acto sexual é banido do mundo humano na medida em que contradiz a idealização da pessoa humana perseguida no Ocidente, desde o paganismo até aos nossos dias. Na Índia, Adão e Eva, pelo contrário, são mostrados em acto de união carnal, porque o acto sexual não é excluído do mundo humano, e sim incluído e recuperado como êxtase cósmico, como comunicação total. Naturalmente, nas representações europeias Adão e Eva, justamente porque o acto sexual é rejeitado e excluído da história, têm um rosto reconhecível, histórico, ao passo que na representações indianas o seu rosto é apagado pelo êxtase sexual, que os subtrai à história e os dissipa no nada cósmico.

Dentro do recinto de Khajurah, depois de termos visitado os templos um por um, notámos que num canto havia uma grande cabana que tinha uma espécie de pórtico rústico, com o telhado de palha e colunas de troncos de árvores. Sob o pórtico ardia um fogo feito com galhos secos, porque era Inverno e começava a anoitecer. Atrás do fogo entrevimos uma cara alucinada, de olhos intensos, barba selvagem e cabelos compridos. Nisto, o homem pôs-se em pé, revelando um corpo completamente nu, muito magro, muito escuro, que era macilento e ao mesmo tempo obscenamente musculoso.

O homem saiu do pórtico e avançou com passo elástico e quase dançante pelo caminho de saibro, como quem quer desentorpecer as pernas depois de estar muito tempo imóvel. Um soldado que cirandava pelos caminhos, ao avistar o homem nu, tirou à pressa um cigarro do bolso e, quando ele lhe passou ao alcance, introduziu-lho na boca, como quem dá de comer a um doente ou a uma criança. O homem nu deteve-se um segundo, o tempo necessário para deixar que ele lhe acendesse o cigarro, e a seguir, sem agradecer, afastou-se em passo de corrida, de testa erguida, a barba no ar, fumando energicamente. Era um guru, um asceta, ou seja, um homem de religião que elegera o recinto dos templos como lugar de ascese e meditação. Este homem nu, votado de certeza à mais rigorosa castidade, vivia ali a dois passos das esculturas eróticas dos templos; mas não nos pareceu que entre a sua castidade e aquela carnalidade existisse um verdadeiro contraste. O seu ascetismo não contradizia o frenesi sexual das esculturas, pelo contrário, confirmava-o e explicava-o. Naquelas esculturas estava representada a forma, digamos assim, laica, de anular a pessoa humana; ele, por sua vez, era uma ilustração viva da forma religiosa de o fazer. De ambas as formas, o mundo humano, histórico, era esvaziado de qualquer importância e significado e reduzido a nada.

 

Sem comentários: